
Roberto Carlos nos dá uma aula de cultura pop sem precedentes nesse disco. Trata-se de um álbum tão conceitual como vários que vinham sendo lançados, à época, no mundo todo. Ele gira em torno de uma idéia: idiossincrasias, tristeza e "confusões da mente" de um lado, e uma beleza quase infantil e ingênua do outro. Coisa meio barroca. Simboliza uma espécie de passagem para a maturidade, já prenunciada a partir do disco
O inimitável, mas totalmente explícita aqui. Além da capa, onde, em preto e branco, o "Rei" exibe um semblante triste e sofrido, como um "São Sebastião moderno", o som do disco é "nublado". Não tem muitos agudos, o que lhe dá uma especial beleza sombria. Arranjos primorosos, com instrumentos que, não coincidente, evocam algo de barroco, pontuam as canções, e o "Rei", no auge da forma, faz o que quer com as canções. Analisemos este disco fabuloso, música por música.
À distância...Música que evoca uma separação não-resolvida, um amor perdido e talvez unilateral. Romântica e sofrida, com uma grande interpretação do "Rei". Cordas muito densas no canal esquerdo, em alguns momentos até se sobrepondo à voz.
À Janela...Música tensa, dá uma certa sensação de aflição. Vai crescendo aos poucos enquanto o "Rei", no seu lado trovador, canta sobre confusões e a vontade de sair de casa, seja a dos pais ou o lar conjugal. As cordas e madeiras criam outra "nuvem cinzenta", e em um dado momento, a música vai ficando forte e surge aquela "brechinha" de sol. A voz do "Rei" está sempre mansa, mesmo quando ele fala sobre tormentos e problemas. É como se ele expusesse o problema e, mansamente, oferecesse uma solução. Detalhe curioso: as backing vocals são americanas e cantam apenas "coisas da vida", com um sotaque muito forte. O "Rei" entoa "choque de opiniões", e elas, "coisas da vida". No segundo verso, a música tem mais leveza e movimento, com metais e o coro fazendo "wooooo"...
A montanha...Música de fé religiosa, aparentemente simples, mas com influências de ragtime, o "avô" do jazz, e pequenas intervenções de instrumentos que dão graça ao arranjo. Em todas as entradas de verso, o tom da música sobe, e ela vai se tornando mais movimentada, iluminada, e adquire um clima de festa ou culto. No disco, a presença dessa música é emblemática, porque o Senhor surge como solução para todos os males e tormentas...
Acalanto...O "Rei" trata da paternidade nessa canção de Dorival Caymmi. É de uma singeleza angelical impressionante, evocada pela voz feminina no início... E a voz "real" está lá, mansa, no "pé do ouvido", "embalando a criança". Talvez a paternidade recente de Luciana tenha o influenciado.
Agora eu sei...Canção meio folk-rock com ligeiras influências de Crosby; Stills; Nash e Young; James Taylor; Bob Dylan; e outros do gênero. Destaque para o violão no arranjo, que é bem simples, e, claro, para a voz do "Rei". Detalhe interessante: os backing vocals são de Roberto, em "falsetão" mesmo. Coisa muito rara.
Como vai você...A canção de Antônio Marcos é uma das melhores interpretações de Roberto em todos os tempos! Que sentimento ele põe! Como ele transmite o sentimento, mais uma vez, na tentativa de recuperar um amor perdido, de forma exata! O arranjo é sensacional! Cravo, violão, cordas... E a voz do "Rei" soa maravilhosamente. As nuances que ele dá (vide, sobretudo, a segunda "razão da minha paz já esquecida") são históricas. Difícil falar muito dessa obra-prima.
Negra...Linda canção, lindo arranjo, grande interpretação do "Rei". Só que hoje em dia a temática dela soa politicamente incorreta e até meio racista. Mas em 1972 essas questões faziam sentido. Mesmo assim, Elis Regina e Marcos Valle já cantavam que "Black is beautiful"...
O divã...Canção já muito dissecada e estudada. O único momento em que o "Rei" falará mais explicitamente sobre seu mítico acidente de infância. Cifrada, tensa, "nublada", densa, com várias imagens musicadas no arranjo, principalmente o movimento de um trem... A letra cifrada, meio confusa, voz mansa, "no ouvido", apesar de toda a dor, e aquele espírito de trova... Coisa de gênios. Desde Roberto até o engenheiro de som, passando pelo arranjador e pelos músicos, que executaram tudo com competência. Sem confusões na mente.
Por amor...Outra música que fala de amor perdido, e do sofrimento consequente. Fala de sentimentos de culpa, orgulho, depressão pela perda do amor, desilusão, enfim. Arranjo simples, mas muito adequado, de forma a enfatizar o canto.
Quando as crianças saírem de férias...As tormentas do pai que não pode curtir sua mulher em nome da necessidade dos filhos de receber atenção é relatada como trova por Roberto. Música bem simples, mas uma historinha bem contada. Atenção para a voz "dobrada" do "Rei" para "engordá-la".
Você é linda...Bela, linda música que descreve a admiração do "Rei" por uma grávida anônima. Como mero observador externo, ele vai falando do que vê, do que observa... "Nuvens brancas" no arranjo, com as cordas evocando esperança, e a voz "real" novamente é terna, doce, e positiva. Uma grande interpretação de Roberto.
Você já me esqueceu...A introdução lembra
Detalhes... É, também, uma música que trata da tristeza da perda de um amor. Apesar das flautas darem uma estranha leveza a esse tema... Mais "nuvens" ao longo do arranjo. Mas estão ocultas pela "noite". A interpretação "real" é pensativa, e não tão sofrida...
Algumas curiosidades interessantes...- Em 1972, o "Rei" não tem uma música sequer para seduzir uma mulher, e não fala de amores bem-resolvidos. Fala de amores perdidos, da tormenta, e pede voltas.
- Quando falo de nuvens, falo das nuances e imagens que a orquestra de cordas desenha nesse disco, volta e meia. Dá pra sentir o tipo de nuvem, o que ela pretende descrever, quais os movimentos, as tensões...
- Falando em tensões, esse disco oscila entre a tensão total, a expectativa de algo, e a esperança singela.
- O "Rei" adota um tom de observador em algumas faixas e, inclusive, o mistura onde está, sobretudo, em primeira pessoa: "O Divã", no caso.
- O coro soa angelical e talvez a idéia seja essa mesmo.
Por Alexei Michailowsky.
Adaptações: Murillo Pompermayer.