terça-feira, 8 de dezembro de 2009

O antológico álbum de 1972: as canções...


Roberto Carlos nos dá uma aula de cultura pop sem precedentes nesse disco. Trata-se de um álbum tão conceitual como vários que vinham sendo lançados, à época, no mundo todo. Ele gira em torno de uma idéia: idiossincrasias, tristeza e "confusões da mente" de um lado, e uma beleza quase infantil e ingênua do outro. Coisa meio barroca. Simboliza uma espécie de passagem para a maturidade, já prenunciada a partir do disco O inimitável, mas totalmente explícita aqui. Além da capa, onde, em preto e branco, o "Rei" exibe um semblante triste e sofrido, como um "São Sebastião moderno", o som do disco é "nublado". Não tem muitos agudos, o que lhe dá uma especial beleza sombria. Arranjos primorosos, com instrumentos que, não coincidente, evocam algo de barroco, pontuam as canções, e o "Rei", no auge da forma, faz o que quer com as canções. Analisemos este disco fabuloso, música por música.

À distância...

Música que evoca uma separação não-resolvida, um amor perdido e talvez unilateral. Romântica e sofrida, com uma grande interpretação do "Rei". Cordas muito densas no canal esquerdo, em alguns momentos até se sobrepondo à voz.

À Janela...


Música tensa, dá uma certa sensação de aflição. Vai crescendo aos poucos enquanto o "Rei", no seu lado trovador, canta sobre confusões e a vontade de sair de casa, seja a dos pais ou o lar conjugal. As cordas e madeiras criam outra "nuvem cinzenta", e em um dado momento, a música vai ficando forte e surge aquela "brechinha" de sol. A voz do "Rei" está sempre mansa, mesmo quando ele fala sobre tormentos e problemas. É como se ele expusesse o problema e, mansamente, oferecesse uma solução. Detalhe curioso: as backing vocals são americanas e cantam apenas "coisas da vida", com um sotaque muito forte. O "Rei" entoa "choque de opiniões", e elas, "coisas da vida". No segundo verso, a música tem mais leveza e movimento, com metais e o coro fazendo "wooooo"...

A montanha...

Música de fé religiosa, aparentemente simples, mas com influências de ragtime, o "avô" do jazz, e pequenas intervenções de instrumentos que dão graça ao arranjo. Em todas as entradas de verso, o tom da música sobe, e ela vai se tornando mais movimentada, iluminada, e adquire um clima de festa ou culto. No disco, a presença dessa música é emblemática, porque o Senhor surge como solução para todos os males e tormentas...

Acalanto...

O "Rei" trata da paternidade nessa canção de Dorival Caymmi. É de uma singeleza angelical impressionante, evocada pela voz feminina no início... E a voz "real" está lá, mansa, no "pé do ouvido", "embalando a criança". Talvez a paternidade recente de Luciana tenha o influenciado.

Agora eu sei...


Canção meio folk-rock com ligeiras influências de Crosby; Stills; Nash e Young; James Taylor; Bob Dylan; e outros do gênero. Destaque para o violão no arranjo, que é bem simples, e, claro, para a voz do "Rei". Detalhe interessante: os backing vocals são de Roberto, em "falsetão" mesmo. Coisa muito rara.

Como vai você...

A canção de Antônio Marcos é uma das melhores interpretações de Roberto em todos os tempos! Que sentimento ele põe! Como ele transmite o sentimento, mais uma vez, na tentativa de recuperar um amor perdido, de forma exata! O arranjo é sensacional! Cravo, violão, cordas... E a voz do "Rei" soa maravilhosamente. As nuances que ele dá (vide, sobretudo, a segunda "razão da minha paz já esquecida") são históricas. Difícil falar muito dessa obra-prima.

Negra...


Linda canção, lindo arranjo, grande interpretação do "Rei". Só que hoje em dia a temática dela soa politicamente incorreta e até meio racista. Mas em 1972 essas questões faziam sentido. Mesmo assim, Elis Regina e Marcos Valle já cantavam que "Black is beautiful"...

O divã...

Canção já muito dissecada e estudada. O único momento em que o "Rei" falará mais explicitamente sobre seu mítico acidente de infância. Cifrada, tensa, "nublada", densa, com várias imagens musicadas no arranjo, principalmente o movimento de um trem... A letra cifrada, meio confusa, voz mansa, "no ouvido", apesar de toda a dor, e aquele espírito de trova... Coisa de gênios. Desde Roberto até o engenheiro de som, passando pelo arranjador e pelos músicos, que executaram tudo com competência. Sem confusões na mente.

Por amor...

Outra música que fala de amor perdido, e do sofrimento consequente. Fala de sentimentos de culpa, orgulho, depressão pela perda do amor, desilusão, enfim. Arranjo simples, mas muito adequado, de forma a enfatizar o canto.

Quando as crianças saírem de férias...

As tormentas do pai que não pode curtir sua mulher em nome da necessidade dos filhos de receber atenção é relatada como trova por Roberto. Música bem simples, mas uma historinha bem contada. Atenção para a voz "dobrada" do "Rei" para "engordá-la".

Você é linda...

Bela, linda música que descreve a admiração do "Rei" por uma grávida anônima. Como mero observador externo, ele vai falando do que vê, do que observa... "Nuvens brancas" no arranjo, com as cordas evocando esperança, e a voz "real" novamente é terna, doce, e positiva. Uma grande interpretação de Roberto.

Você já me esqueceu...

A introdução lembra Detalhes... É, também, uma música que trata da tristeza da perda de um amor. Apesar das flautas darem uma estranha leveza a esse tema... Mais "nuvens" ao longo do arranjo. Mas estão ocultas pela "noite". A interpretação "real" é pensativa, e não tão sofrida...

Algumas curiosidades interessantes...

- Em 1972, o "Rei" não tem uma música sequer para seduzir uma mulher, e não fala de amores bem-resolvidos. Fala de amores perdidos, da tormenta, e pede voltas.

- Quando falo de nuvens, falo das nuances e imagens que a orquestra de cordas desenha nesse disco, volta e meia. Dá pra sentir o tipo de nuvem, o que ela pretende descrever, quais os movimentos, as tensões...

- Falando em tensões, esse disco oscila entre a tensão total, a expectativa de algo, e a esperança singela.

- O "Rei" adota um tom de observador em algumas faixas e, inclusive, o mistura onde está, sobretudo, em primeira pessoa: "O Divã", no caso.

- O coro soa angelical e talvez a idéia seja essa mesmo.

Por Alexei Michailowsky.
Adaptações: Murillo Pompermayer.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A maior contribuição "real"!


O fato do "Rei" ter trazido o soul ao Brasil foi, decerto, de insólita importância, conforme fiz alusão na postagem inicial deste blog. Contudo, sua contribuição de maior relevância na música popular brasileira foi a inserção do país num universo pop. Até os anos 60, isso praticamente não existia aqui. Tudo bem, houve a Bossa Nova, que se internacionalizou a partir de 1962, mas ela foi um movimento elitizado.

Não é verdadeiro dizer que antes do "Rei" a música brasileira era "pura", porque elementos internacionais foram empregados a ela desde a "pré-história". Porém, com a Jovem Guarda, a música ficou bem mais universal. O pop tocado pela turma de Roberto não era diferente do que era tocado na Inglaterra e nos Estados Unidos, e todas as "engrenagens" que vinham acopladas – revistas, roupas, filmes, produtos vinculados, tecnologia moderna, etc. – estavam lá.

Roberto, que estava bem atualizado com a "cartilha" do ídolo pop da época (que era universal), também foi pioneiro na utilização do soul (vide: http://outravezorei.blogspot.com/2009/11/como-roberto-carlos-trouxe-o-soul-para.html) e da música negra, num momento em que ela era extremamente influente, inclusive no "pop branco".

Essa consolidação do Brasil num universo pop foi a maior contribuição "real" para a nossa música. Depois de um tempo, ele saiu da "linha de frente", e deixou de ser criador de tendências para criar seu próprio universo, bem característico, mas aí a história é outra...

Por Alexei Michailowsky.
Adaptações: Murillo Pompermayer.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A voz do "Rei"...


A voz "real" tem sido motivo de muita discussão. Há quem diga que ele não canta bem, que é meio fanho, que tem uma voz pequena, e por aí vai... Roberto, de fato, não tem um "vozeirão" com muita extensão, mas tem uma voz "bem educada", e, em 50 anos de carreira fonográfica, aprendeu a usar bem os recursos que tem – e não são poucos. Analisemos, então, a evolução de sua voz.

De 1959 a 1965...

Roberto emitia um timbre mais grave, pouco anasalado, aveludado... E cantava de um jeito contido, exceto por uns "uivos" nos rocks. Reparem que nos 78 RPM de Bossa Nova e no Louco por você, a voz é bem de garoto, o que é natural, já que Roberto tinha entre 18 e 21 anos.

1965...

Surge o Roberto da Jovem Guarda, adquirindo "malandragem" e atitude no cantar. Ele não mais canta de um jeito linear. Pronuncia sílabas com força, "arranhando a garganta". Incorpora, então, influências de canto falado, e o timbre se torna anasalado. O disco desse ano representa a transição. Algumas músicas ele canta do jeito "antigo"... Esperando você, por exemplo, e outras, como É papo firme, da "nova" forma.

1966-67...

Ele vai desenvolvendo a "malandragem" já mencionada na forma de cantar, e o timbre mais aveludado que usa nas músicas românticas fica mais forte e seguro.

1968...

Surge a voz "adulta" do "Rei", que consegue conciliar os timbres anasalados e aveludados. Graças às músicas mais sérias, ele mostra nuances que até então não mostrava... As canções que você fez pra mim, por exemplo. E passa a atingir extensões maiores. Além disso, "berra" como cantor negro.

1970...

Em Pra você e Astronauta, o "Rei" "inaugura" uma nova modalidade de canto. No caso, suave, contido, "ao pé do ouvido". Irá chegar ao auge disso muito em breve.

1971...


O "Rei" está maduro e no ápice do seu canto. No disco desse ano, ele usa todo o seu repertório. "Berra" em Todos estão surdos, A namorada, Só tenho um caminho... Pronuncia sua voz "definitiva" (muito melhor do que cantaria depois) em Traumas, Como dois e dois, e vai "ao pé do ouvido" em Detalhes e De tanto amor.

1972: disco importantíssimo...

Conceitual, cheio de detalhes interessantes. Ele pretende chegar ao "fundo do coração" das pessoas. E de uma forma muito íntima e conceitual. O som todo do disco é "nublado", "cinzento", como a capa... E a voz do "Rei", exceto em umas poucas canções, é extremamente "macia", "ao pé do ouvido", como ele nunca fez, e depois não voltará a fazer. Vão predominar os tons mais agudos.

1973 a 1975...

Ele está no auge da forma vocal, como em 1971. Não volta a cantar "ao pé do ouvido", mas retoma a força e os nuances em músicas como O moço velho e Além do horizonte. Seu canto é "limpo" e expressivo, vide Olha, Proposta e Você.

1976 até os dias atuais...

Surge a voz e o jeito de cantar que ele consolidou a partir daí e do qual não mais se afastou. Canta "pelo nariz", adota uma margem "confortável" de tonalidades, e não mais irá se "aventurar" por tons mais agudos, nem cantar com força como antes. Também abandonará a suavidade "ao pé do ouvido". Vai cantar sempre com vibrato, bem mais do que fazia antes. E, aos poucos, sua interpretação vai ficando mais linear, sem tantos nuances. Até hoje, e desde então, a voz "real" soa bem homogênea nas gravações, com a mesma equalização. Os "mapas" de gravação devem ter seguido um padrão, iniciado nos Estados Unidos, onde ele gravou de 1971 a 1984, e seguindo depois aqui. Como "aulas" de uso de recursos vocais, os discos de 1968 a 1975 são exemplares. Depois, o "Rei" meio que "escondeu o jogo"...

Por Alexei Michailowsky.
Adaptações: Murillo Pompermayer.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Como Roberto Carlos trouxe o soul para o Brasil...


A postagem inaugural deste blog, que é vinculado ao programa Outra Vez, o Rei..., fará menção à contribuição de assaz importância, mas que poucos têm conhecimento, acerca da vinda – e posterior difusão – de uma vertente musical em nosso país, cujo responsável foi justamente Roberto Carlos. Refiro-me ao soul.

Acredito que já havia música soul sendo feita no Brasil por volta de 1966. Talvez por alguns "antenados", uma vez que ela era bem moderna nessa época, e sofria muitas transformações. Mas apenas Roberto Carlos poderia propagar esse estilo de música em escala nacional no Brasil. Tudo o que ele fazia tinha público, dava ibope, e ele precisava diversificar seus caminhos, sobretudo com a concorrência baiana e a decadência da Jovem Guarda.

Seguidamente, em 1967, veio a canção Quando, que ainda possuía "ecos jovem-guardistas", mas que já continha pontuados, e um "groove" inesquecível, criado por um baixista inspirado e ensandecido... Provavelmente Paulo César Barros. Ninguém tinha como "ver a luz" naquela época, mas tínhamos, então, outro "Rei": o "Rei" "negão". Sim, o pioneiro número um do soul brasileiro poderia ser Tim Maia, um negro de fato.. Mas Tim acabara de chegar da América (e da cadeia) e não tinha tanto "trânsito" no mercado fonográfico. Quem era o homem que podia abrir caminho? Claro, Roberto Carlos.

O álbum O inimitável, de 1968, pode ser considerado um disco cinquenta por cento soul, e tem inúmeros clássicos do gênero, tais como Ciúme de você, Eu te amo, eu te amo, eu te amo, dentre outras. Foram, sem exceção, muito bem recebidas pelo público.

A partir daí, a "suingueira" imperou no Brasil. Outros artistas brancos, como Marcos Valle e Elis Regina, adotaram o soul, e, mais importante, artistas negros aderiram com êxito o suingue. Cito, por exemplo, Trio Esperança, Trio Ternura, Dom Salvador, e o próprio "síndico", Tim, que gravou seus primeiros singles em 1968.

Por Alexei Michailowsky.
Adaptações: Murillo Pompermayer.