sábado, 2 de janeiro de 2010

1972: de fato conceitual?


Há quem questione sobre o fato de o disco de 1972 ser conceitual ou não. Obviamente, é.
Um disco conceitual, como o próprio nome caracteriza, gira em torno de uma idéia, de um conceito artístico. Produto típico do final dos anos 60 e dos anos 70, tem elementos artísticos sintonizados com o conceito que vão desde a capa. Enfim, estranhamente para quem considerar a postura que adotou hoje, em 1970, 71, 72, Roberto Carlos estava querendo se deitar no divã e dividir com seu público todas as suas questões existenciais. Tendo uma história de vida muito rica em detalhes, com uma pitada até grande de sofrimento, o material que tinha era farto.

Não acredito que ele tenha composto esse material de uma só levada, tanto que o disco de 71 já tinha Traumas e acenava para esse caminho. Mas, para o disco de 1972, ele tinha um bom material, que permitiria a construção desse disco. A produção de um trabalho assim envolve toda uma máquina. Uma gravadora, com seus executivos, A&Rs, arranjadores, produtores, etc. E Roberto tinha Evandro Ribeiro, que o ajudou a construir esse trabalho.

Vamos às palavras do jornalista e crítico musical, Pedro Alexandre Sanches: Quem comprasse o RC versão 1972 nas lojas decoradas de Natal teria a impressão de estar levando Jesus Cristo para casa. Vinha ornado por uma das mais belas e pungentes imagens de capa de disco que o Brasil deve ter sempre conhecido. Novamente em tons sóbrios (nesse caso, em estrito preto-e-branco), ela ostentava em close um RC de longos cabelos encaracolados, olhos fugidios deslocados para baixo e à direita e uma expressão de profunda tristeza, que ia do modo de olhar ao contorno grave dos lábios. Não havia cruz ou coroa de louros, mas era quase uma imagem sacra, um fetiche de consolo que acalmasse a alma do observador como o fariam as contas de um terço ou o ascetismo de um confessionário.

O louvor assustado de RC a Jesus construía a imagem de um espelho. Ao amar Jesus, o homem daquela fotografia amava a si mesmo, lotado de misericórdia. Ao amar a imagem límpida daquela fotografia, o consumidor daquele disco amava Roberto Carlos e Jesus Cristo, e, em imagem, amava a si mesmo, cheio de pena deles e por si. Amando-se a si mesmo, saía do anonimato e se tornava popstar, divindade religiosa, as duas coisas ao mesmo tempo. E assimilava as obrigações, culpas, dogmas, dós e medos que tal associação implicava, e que vinham expostas não só no olhar abandonado do totem, mas nas linhas musicais e textuais de todo o disco.


Olha aí: conceitual. Na minha opinião, o prenúncio dessa famosa capa está no final do filme Roberto Carlos a 300 km/h, onde, na sequência final, rejeitado pela mocinha, Roberto, ao som de De tanto amor, exibe um semblante de imensa tristeza e solidão. Alegrando-se depois pelo casamento de Erasmo e, "chaplinianamente", partindo, enquanto sobe a grua da câmera. Filmes à parte, e ampliando muito mais seu raio de ação, Roberto parecia pensar muito no ilógico, no paradoxo entre o que vivera até ali e sua situação de ídolo.

A infância pobre em Cachoeiro, a condição de deficiente físico adquirida após o famoso acidente onde foi colhido por um trem (estranho pensar que o maior símbolo sexual da história da MPB, num país que cultua o corpo além dos limites, é um amputado), a luta para se tornar cantor, a condição de ídolo de um povo reprimido pela ditadura, as rejeições, os amores difíceis, os problemas de saúde do filho... Tudo isso pesava no "Rei", naqueles tempos. Pensando bem, em 1969 ele já estava assim. Acho que o que fez Roberto sair daquela alegria e daquele "olimpo popstar" foram os problemas de Segundinho, hoje Dudu Braga, e lá estava As flores do jardim da nossa casa. E 72 foi o auge.

Neste álbum, músicas coerentes, amarradas pelo tema da confusão, da incerteza, da insegurança sobre seguir convenções sociais ou transgredir em nome da felicidade pessoal, da luta por amores difíceis, alimentada por Antônio e Mário Marcos e sua Como vai você, e, principalmente, a prova de que nem só de alegria vive o "Rei" do Brasil, "remexendo no baú" e se lembrando de um distante (ou nem tanto) 29 de junho de 1947, cuja recordação lhe vem todos os dias pela necessidade de uso de uma perna mecânica.

Todos trabalharam, nesse disco, para definir bem essa imagem. Os arranjadores americanos criaram texturas "nubladas", nuances barrocas, imagens sonoras muitas vezes cinematográficas, explicativas (O divã é repleta disso). Os engenheiros de som deixaram o disco com uma sonoridade um tanto quanto velada, "escurecendo as nuvens". E a voz? Ao contrário dos berros do passado imediato e das inflexões soul, Roberto vem cantando manso, procurando seus agudos (coisa que nunca mais faria), criando uma sensação de cantar "ao pé do ouvido" de seu público, sem se deixar alterar pela tristeza, sem espasmos (mas mostrando uma longa convivência, uma absorção a ela), faz um convite quase irrecusável a que todos lhe ouçam e prestem atenção no que queria dizer.

Enfim, tudo conspirou para que essas idéias funcionassem. A CBS trabalhou muito bem, e o produto é esse. Não é conceitual?

Por Alexei Michailowsky.
Adaptações: Murillo Pompermayer.